Manhãzinha bem cedo o Manel
levantou-se e deu ordem a preparar a cozinha para desmanchar o animal.
Espalhava sacos de juta pelo
chão de modo a que não ficasse denhuma tábua á
mostra. Punha á mão as facas nassairas, o
cepo, a machada e os cestos de vime para por a carne depois de cortada.
A mulher emparelhou com ele
nestes trabalhos debruçando-se mais dobre o caixão. O seu Manel já tinha ido á
vala apanhar um feixe de canas secas e depois de as limpar de folhas, cortou-as
com o comprimento igual á largura do caixão e escalou-as de modo a que cada uma
desse duas iguais e permitisse que estas assentassem melhor no fundo da
salgadeira.
Depois de lavar o caixão
convenientemente, ainda de lá tirou um bom naco de toicinho do porco velho,
secou-o com um pano e espalhou uma camadita de agulhas, bem secas, e depois de
as calcar convenientemente, assentou-lhe em cima a camada das canas cortadas,
todas muito encostadinhas umas às outras, com o corte para baixo e a parte
redonda para cima permitindo que a carne escorresse com o tempo e tomasse de
sal como devia ser. Graças a Deus e ao trato que lhe deu, o seu porco tinha
mais de uma mão-travessa de toicinho alto. Que riqueza para o adubar das sopas…
e atão prás
favas nem se fala.
Estava um frio de
rachar e viram-se obrigados a acender uma fogueirita para aquecer o ambiente,
até porque também era preciso atear o lume á panela de três pernas que se
encontrava cheia de água mas já só estava mornita.
Tudo a posto, há que por o porco
abaixo. Sim, porque ontem deixaram-no pendurado atrás da porta da cozinha, de
pernas para o ar, para escorrer alguma coisa!
Subiu ao escadote, desamarrou a
tiradoira e, enquanto a mulher puxava o porco pelas mãos, ele ia folgando a
corda de modo que, pouco depois, estava o bicho de pernas para o ar e com a
barriga aberta com dois cortes, paralelos, por onde lhe foram tiradas as
tripas, no meio da cozinha. Estava feiro o mais difícil. Agora era só arregaçar
as mangas, agarrar na sangradeira e começar a esquartejar o esqueleto do bicho.
Cortou de imediato a pituga e
entregou-a á mulher. Esta, com a sua faca da cozinha, separou logo a carne da
facada da restante da pituga,
colocando-as em cestos diferentes. Neste entretanto, o Manel, com duas
machadadas certeiras, separou a cabeça do resto do corpo do animal. Que grande
cabeça tinha o seu bicho! Colocou-a a um canto da cozinha, em cima de um saco,
para arranjar depois no final.
Com o porco nesta posição, de
pernas para o ar e esventrado de vísceras, meteu as mãos às banhas, gordura
sólida agarrada às costelas no interior, e arrancou-as com vigor, ficando assim
com mais dois pedaços que a Maria iria transformar em duas panelas de manteiga
limpa e salmanteiga para adubar a comida.
Agarrou depois a sangradeira e,
com golpes certeiros, separou os lombinhos da espinha do porco, guardando-os
num prato grande. Agarrou de novo na machada e com golpeou as costelas junto á
espinha, dum lado e doutro desta, ficando assim com o porco em três peças
distintas: mão direita, costelas e perna direita, dum lado, mão esquerda,
costelas e perna esquerda, do outro e a espinha com o rabo agarrado. Partiu o
espinhaço em três e guardou os bocados num cesto à parte.
Com mestria, separou primeiro as
mãos, depois as costelas e por fim as pernas ficando o toicinho num só monte.
As costelas juntou-as ao espinhaço no mesmo cesto. Tendo juntado as mãos e as
pernas, recuou um pouco, chamou a Maria e ficaram a olhar uns momentos para o
monte de febras que o porco tinha dado. Agarrados ao toicinho estavam ainda os
lombos. E que grandes e pesados que eles eram. Talvez a passar de uma arroba
cada um! Juntou-os noutro cesto que ficou a aguardar as febras que siariam das
espaduas das mãos e das pernas.
Pegou nos toicinhos, um de cada
vez, e arregalou os olhos perante tal enormidade. Estava garantido o sustento
para o ano inteiro, assim sua mulher continuasse a sabre arratelar a carne e
restante comida. Estava ele nesta cogitação quando a Maria o lembrou que queria
separar já um pesunho para pagar a promessa a Stº António, um lombinho para ir
entregar ao Sr. Prior e meio lombo para dar ao Sr Doutor!
E lá começou o porco a andar
para fora da salgadeira sem sequer lá ter entrado!
Mas haja saúde e anos de vida
que a Graça de Deus Também não há-de faltar…
Enregou então a limpar toda a
febra que cortou e, unida aos lombos, estava agora agarrada ao toicinho. Passou
depois para os membros e começou por lhes tirar o coiro deixando a febra limpa
e agarrada aos ossos. Este trabalho feito e começou e entrar-lhe pelas narinas
um agradável cheirinho a torresmos feitos: era a Maria que estornicava as
rendas das tripas. Que bem que cheirava…
Agora sim. Podia afirmar que o
porco era uma farturinha de tudo: febras, carne, ossos, tripas, etc.
Com os ossos todos juntos deu
ordem a cortar a carne com o tamanho que a Maria lhe ia ordenando: um palmo de
largura e um metro, mais ou menos, de comprimento, para caber dentro do caixão.
À maneira que ele ia cortando assim a carne, ela, diligentemente, ia carregando
para o caixão, colocava uma camada de sal novo em cima das canas e depois
assentava a tira da carne sobre ele, com o coiro virado para baixo e nova
camada de sal sobre esta. Cada pedaço de carne tinha que ficar perfeitamente
tapada e apertado com o sal não podendo ficar a tocar um no outro sob pena de
arder e estragar-se.
Cortou depois os ossos e todo o
resto do porco que a patroa foi arrumando sempre coberto com sal.
Agora estava frente a frente com
a cabeça do animal. Metia respeito, sim senhor…