sexta-feira, 22 de maio de 2015

E lá começou o porco a andar para fora da salgadeira sem sequer lá ter entrado!



Manhãzinha bem cedo o Manel levantou-se e deu ordem a preparar a cozinha para desmanchar o animal.


Espalhava sacos de juta pelo chão de modo a que não ficasse denhuma tábua á mostra. Punha á mão as facas nassairas, o cepo, a machada e os cestos de vime para por a carne depois de cortada.


A mulher emparelhou com ele nestes trabalhos debruçando-se mais dobre o caixão. O seu Manel já tinha ido á vala apanhar um feixe de canas secas e depois de as limpar de folhas, cortou-as com o comprimento igual á largura do caixão e escalou-as de modo a que cada uma desse duas iguais e permitisse que estas assentassem melhor no fundo da salgadeira.


Depois de lavar o caixão convenientemente, ainda de lá tirou um bom naco de toicinho do porco velho, secou-o com um pano e espalhou uma camadita de agulhas, bem secas, e depois de as calcar convenientemente, assentou-lhe em cima a camada das canas cortadas, todas muito encostadinhas umas às outras, com o corte para baixo e a parte redonda para cima permitindo que a carne escorresse com o tempo e tomasse de sal como devia ser. Graças a Deus e ao trato que lhe deu, o seu porco tinha mais de uma mão-travessa de toicinho alto. Que riqueza para o adubar das sopas… e atão prás favas nem se fala.


Estava um frio de rachar e viram-se obrigados a acender uma fogueirita para aquecer o ambiente, até porque também era preciso atear o lume á panela de três pernas que se encontrava cheia de água mas já só estava mornita.


Tudo a posto, há que por o porco abaixo. Sim, porque ontem deixaram-no pendurado atrás da porta da cozinha, de pernas para o ar, para escorrer alguma coisa!


Subiu ao escadote, desamarrou a tiradoira e, enquanto a mulher puxava o porco pelas mãos, ele ia folgando a corda de modo que, pouco depois, estava o bicho de pernas para o ar e com a barriga aberta com dois cortes, paralelos, por onde lhe foram tiradas as tripas, no meio da cozinha. Estava feiro o mais difícil. Agora era só arregaçar as mangas, agarrar na sangradeira e começar a esquartejar o esqueleto do bicho. Cortou de imediato a pituga e entregou-a á mulher. Esta, com a sua faca da cozinha, separou logo a carne da facada da restante da pituga, colocando-as em cestos diferentes. Neste entretanto, o Manel, com duas machadadas certeiras, separou a cabeça do resto do corpo do animal. Que grande cabeça tinha o seu bicho! Colocou-a a um canto da cozinha, em cima de um saco, para arranjar depois no final.


Com o porco nesta posição, de pernas para o ar e esventrado de vísceras, meteu as mãos às banhas, gordura sólida agarrada às costelas no interior, e arrancou-as com vigor, ficando assim com mais dois pedaços que a Maria iria transformar em duas panelas de manteiga limpa e salmanteiga para adubar a comida.


Agarrou depois a sangradeira e, com golpes certeiros, separou os lombinhos da espinha do porco, guardando-os num prato grande. Agarrou de novo na machada e com golpeou as costelas junto á espinha, dum lado e doutro desta, ficando assim com o porco em três peças distintas: mão direita, costelas e perna direita, dum lado, mão esquerda, costelas e perna esquerda, do outro e a espinha com o rabo agarrado. Partiu o espinhaço em três e guardou os bocados num cesto à parte.


Com mestria, separou primeiro as mãos, depois as costelas e por fim as pernas ficando o toicinho num só monte. As costelas juntou-as ao espinhaço no mesmo cesto. Tendo juntado as mãos e as pernas, recuou um pouco, chamou a Maria e ficaram a olhar uns momentos para o monte de febras que o porco tinha dado. Agarrados ao toicinho estavam ainda os lombos. E que grandes e pesados que eles eram. Talvez a passar de uma arroba cada um! Juntou-os noutro cesto que ficou a aguardar as febras que siariam das espaduas das mãos e das pernas.


Pegou nos toicinhos, um de cada vez, e arregalou os olhos perante tal enormidade. Estava garantido o sustento para o ano inteiro, assim sua mulher continuasse a sabre arratelar a carne e restante comida. Estava ele nesta cogitação quando a Maria o lembrou que queria separar já um pesunho para pagar a promessa a Stº António, um lombinho para ir entregar ao Sr. Prior e meio lombo para dar ao Sr Doutor!


E lá começou o porco a andar para fora da salgadeira sem sequer lá ter entrado!


Mas haja saúde e anos de vida que a Graça de Deus Também não há-de faltar…


Enregou então a limpar toda a febra que cortou e, unida aos lombos, estava agora agarrada ao toicinho. Passou depois para os membros e começou por lhes tirar o coiro deixando a febra limpa e agarrada aos ossos. Este trabalho feito e começou e entrar-lhe pelas narinas um agradável cheirinho a torresmos feitos: era a Maria que estornicava as rendas das tripas. Que bem que cheirava…


Agora sim. Podia afirmar que o porco era uma farturinha de tudo: febras, carne, ossos, tripas, etc.


Com os ossos todos juntos deu ordem a cortar a carne com o tamanho que a Maria lhe ia ordenando: um palmo de largura e um metro, mais ou menos, de comprimento, para caber dentro do caixão. À maneira que ele ia cortando assim a carne, ela, diligentemente, ia carregando para o caixão, colocava uma camada de sal novo em cima das canas e depois assentava a tira da carne sobre ele, com o coiro virado para baixo e nova camada de sal sobre esta. Cada pedaço de carne tinha que ficar perfeitamente tapada e apertado com o sal não podendo ficar a tocar um no outro sob pena de arder e estragar-se.


Cortou depois os ossos e todo o resto do porco que a patroa foi arrumando sempre coberto com sal.


Agora estava frente a frente com a cabeça do animal. Metia respeito, sim senhor…


Arquivo do blogue