segunda-feira, 22 de junho de 2009

Lástima, "lamechisse",...

… o nosso moliceiro, de adulado, querido, visitado, está postado, esquecido, notam-se-lhe ”rugas” profundas limitando as peças inteiras que unem proa e popa! Nunca lhe foi dada a oportunidade de se deliciar sulcando as mansas águas da Ria e a força indómita do oceano que as força a recuar e entrar de rompante por terra dentro, revoltado pela mistura que é forçado a aceitar e em que é parte colaborante, embora contra vontade! Teve a dita de muitas vezes ter ouvido histórias contadas por gente que, embarcada em antepassados seus, muitos dias e noites, uma vida inteira, vezes sem conta, subiram e desceram o braço da Ria a que chamam o Canal de Mira, se aventuraram nas revoltas águas junto ao Farol da Barra e depois, maré feita, entravam de peito franco e aberto, quiçá implorando auxilio divino para domar tal bicho, por esse outro canal da Ria, o Canal da Murtosa que, em horas de maré vazante, deixa as suas águas chocarem com aquelas que vem de Mira, e, assim unidas, se lançam mansamente no grande oceano. Ouviu contos de naufrágios em que parentes seus, devido á carga que transportavam, não resistiram á fúria e berros do oceano e vento juntos, tendo por fim o leito revolto das águas que os abraçaram, levando consigo a carga que transportavam e, algumas das vezes, os seus timoneiros, de tal forma agarrados que nunca mais apareciam com vida. Um moliceiro, já de idade avançada e em dia aprazível, sentado no seu través de estibordo e depois de momentos de isolamento e com o olhar fixo tendo o infinito como objectivo, confidenciou-lhe com amargura, que assim viu ir seu irmão, que nunca o teve á mão, mas que ainda hoje o ouve chamá-lo para que lhe acuda! Apareceu o corpo três dias depois nos areais a Norte de S. Jacinto, já sem olhos… Nunca mais lhe saiu da cabeça aquela imagem, braços ao alto, dedos abertos, todo arranhado na cara, dois buracos no lugar dos olhos, calções de cotim e camisote de riscado vestidos, descalço, roxinho… Ele teve mais sorte, calhou vir ao leme na altura, ao guinar para bombordo tentando desviar-se da onda forte que observou, puxou forte para estibordo e a onda bateu violentamente nas obras vivas, inclinando fatidicamente a embarcação que, com o peso do moliço, se voltou rapidamente e levou seu irmão para o fundo. A ele fê-lo dar um salto que o assustou tremendamente, lançando-o para longe da embarcação de tal forma que lhe permitiu manter-se á tona e nadar para terra, que se encontrava á vista tendo sido socorrido pouco depois por companheiros que passavam na altura, tiveram melhor dita e o recolheram… má hora, lamentou-se…

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