quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

...casos que na vida se passaram,

… que o marcaram e teimam em não se apagar da sua memória. Instado a falar dos mesmos, foi com muita relutância que o fez e mesmo assim só depois de quatro ou cinco tentativas, conversas que começavam neste e ou naquele assunto e só depois descambavam para o objectivo a atingir. Saiu-se bem e curvo-me perante a sua simplicidade, admirando a naturalidade, firmeza e sentimentos com que enunciou muitos factos, mas acima de tudo aquele que descreveu como sendo a partida do seu “ente mais querido”. Parou muitas vezes ao longo da narração. Nunca me atrevi a interrompê-lo, respeitando os seus silêncios e inspirações profundas. Com a voz embargada quer pelo sentimento quer pela emoção que ainda viveu durante o relato, nunca pronunciou o nome da pessoa a que se referia! E porquê? Não ousei questioná-lo! A bisavó de seus filhos, seca de carnes, pequena de corpo, grande alma, coração e bondade (como a ela se referia muita vezes!) sendo mãe solteira, soube ser mulher, mãe, avó sem limites, até ao limite da sua idade! Criou as filhas sozinha, trabalhando terras que não lhe pertenciam, pagando, em géneros, atempada e honradamente, as rendas sempre ajustadas, pelo S. Miguel. Incutiu nele verdadeiros sentimentos de saber querer, saber fazer, audácia, astúcia, bonomia, alegria e vontade de viver cada dia que passa dele tirando o máximo proveito. Soube honradamente defender-se e elevar-se a cada queda derivada aos empurrões que lhe davam, destacando-se e ascendendo a patamares que aqueles que a tentaram espezinhar nunca atingiram! Chorou amargamente quando estes sentimentos, gritos de raiva e revolta reprimidos, vieram ao de cima. Calou-se durante tempo que me pareceu uma eternidade, mas nem este silêncio lhe interrompi! Tamanha foi a pausa que julguei não querer continuar coma narração encetada. Mas não! Levantou-se, pediu desculpa (como se tivesse sido ele a invadir a minha privacidade e não eu, fazendo-me sentir mal…) e saiu para o interior da casa dizendo que já vinha. Os poucos segundos que por lá se demorou (e foram mesmo poucos!) aproveitei-os para viajar rapidamente no tempo e, após percorrer cerca de sessenta anos, tentei encontrar as personagens e locais a que se referia e reconstituir algumas das cenas que me descreveu! Não consegui colocar no sítio todas as peças do puzzle que me propus realizar. Faltou-me sentimento! Alguns acessos súbitos de revolta, levaram-me para onde não queria, outros, em autêntico e perfeito êxtase, nem sequer dava pelo tempo a passar! Regressou á cozinha e voltou…

1 comentário:

  1. Apreciei muito o pitoresco das narrativas. Como já comentei em outro post deste blog, também sou gandarês. Obviamente, tudo o que aqui se diz me é profundamente familiar. Um abraço.

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