sexta-feira, 2 de agosto de 2013


Não foi "Ti Manel" mas serviu-me de fonte muitas vezes...
Fui encontrá-lo cabisbaixo. Sentado debaixo da nogueira grande do quintal, riscava o chão com um pauzito na mão e nem o chilrear abundante e melodioso dos pardais o fazia soltar da sua letargia.
Recebeu-me sem ânimo e parecendo pouco à vontade, mesmo depois de cinco minutos de conversa banal.
Adreguei de falar nos filhos, na seara, no tempo, na festa que se aproxima, mas as suas respostas resumiam-se à libertação de incompreensíveis e lacónicos sons guturais monossilábicos.
Arrepiei caminho e … falei-lhe de mim.
Inicialmente assim se manteve e ia acompanhando a conversa com frases simples, interrogativas, resumidas a um “ ai sim?”
Estava absorto! Algo o havia atingido e mantinha de tal modo interessado que estava a ser muito difícil arranca-lo daquela melancolia e fazê-lo libertar o espírito, permitindo uma viagem ao passado de uma infância e tempos de juventude.
Decididamente, não era dia para o ti Manel expandir as suas memórias e dar a conhecer o resumo de vida e fatos ocorridos durante a sua criação. E ele que diz ter tantas e tão gratas recordações de gente da minha e sua terra…
A idade não se conta só pelos anos. É acentuada pelo peso do corpo e pela pouca mobilidade dos membros. O fato de ter junto de si a bengala, induz-nos a pensar que terá já sérias dificuldades em se deslocar por seus próprios meios, sem apoio, motivo que o limita e lhe faz parar a mente, regredindo e lamentando, com um cheirinho a revolta e não-aceitação, daquilo que foi e naquilo que se tornou.
O quintal está cheio de milho já com caruto e espigas formadas. A terra, muito limpa de ervas, tem um brilho baço, acinzentado e escuro, sinal de ter sido regada há pouco tempo. Nos ramos das árvores em redor do local onde se encontra, esvoaçam e chilreiam os pardais. Ouve-se nitidamente uma rola a cantar…
Repentinamente, ouvindo o cantar de uma rola, o nosso ti Manel, levanta a cabeça e bate no pé com o pauzito com que riscalhava o chão. Sorri e diz com emoção: Sei o sítio onde ela tem o ninho. É o macho que chega com comida para os filhotes. Vês aquela laranjeira grande por detrás da nespereira, é aí que ela todos os anos faz o ninho.
É um encanto estar aqui, em silêncio, a ouvir a natureza no seu melhor. Olha que até já ouvi cantar o cuco hoje! Às vezes dá-me para maquinar e lamentar o tempo vivido. Mas não são os anos que me pesam e carregam. Não fora estas artroses e dores nos joelhos e verias que nada me faria parar aqui. E com este tempo meio encoberto, esta morrinha de manhã, parece que fico tolhidinho de todo. Depois quando o tempo abre e o sol aquece, volta tudo ao normal, mas de manhazinha tenho que me valer da minha companhia. Ai que ricos tempos já lá vão…
Estas modernices agora também ajudam uma pessoa a estar mais parada. Dizem que é para facilitar a vida mas esta facilidade não dá saúde a ninguém. É mais leve realmente mas acaba por se fazer o mesmo trabalho tirando parido das máquinas. Já viste que horas são? Pois são. São sete e um quarto e já aqui estou há mais de uma hora. Sentado e a matenar na vida. No que fui, no que sou e ainda naquilo que ainda quero ser. Ah pois. Ainda tenho projectos que me abrem o espírito me alegram a alma e me arregalam a vista só de pensar nelas e fazer qualquer coisa para os começar a concretizar! Vê lá tu que, com esta idade, ainda me vieram pedir opinião relativamente a sonhos para a nossa terra. Lembrei-me logo que estariam interessados em que fosse falar com alguém dessa gente nova para dar a conhecer o que sei e o nosso rancho tomar nota disso. Fiquei todo contente! Mas não! A intenção era que eu enregasse a frequentar o Centro de Dia, que tinha mais apoio e qualidade de vida, que tinha refeições a horas, que era mais acompanhado na área da saúde, que… que… que…!
Atão mas eu preciso lá disso? E que fazia eu ao meu tempo que tem tantas horas como os dias dos outros e que, às vezes, precisava de ter mais uma ou duas horitas?
O que é que eu faço? Tu estarás bom da cabeça? Atão tu não tens olhos na cara? Atão não reparas no meu quintal, onde nem uma erva se vê, no quintal dos meus filhos, onde eles apanham o que precisam para eles e para os netos? Atão tu não sabes quem é que planta e semeia tudo? Tu não sabes que ainda sou eu quem vai todos os anos á mata apanhar agulhas, para por nas camas da bezerrita e do porco e depois distribuo este esterco pelos quintais, para a sementeira? Atão tu não vês que os tractores são muito bons mas sãos uns inimigos das árvores porque lhe arrancam as raízes todas? É preciso escavaçar o terreno mas sem arrancar as raízes. Escavaçar e estrumar com bom esterco para ter fruta em condições. Venham-me lá com essas conversas modernas que eu até os desanco. Ai querem fazer com que eu esteja parado?
Tarde ou nunca vão ver isso.
Quando for parar aos braços de minha avó, assim muito direitinho e com o casaco de madeira albardado, atão sim! Aí fico descansado, se me lá deitarem e deixarem! Agora enquanto for vivo hei-de rodar pelas ruas e pelaquilo que é meu e dos meus.
Tá bem, tá!
Descobri finalmente o que o fazia maquinar! Mais tarde voltarei ao assunto mas hoje não vale a pena porque não tem outra questão nem dá ouvidos a quem o queira contrariar.

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