Sentou-se no rebate da porta e assim permaneceu durante grande parte da manhã.
Pela cabeça passou-lhe o filme de toda a sua vida. Os momentos mais marcantes teimavam em demorar a passar!
E ele que tinha tantos! Uns bons, outros nem tanto! E recuou mais de sessenta anos…
Com muita clareza e lucidez reviveu fortemente, pela maneira fluente e sentida como as palavras lhe saiam da boca, aquele dia em que, no distante Campo Militar de Sta Margarida, integrando um dos inúmeros pelotões formados desde a porta de armas até á Igreja, bem lá ao fundo, soube que iria ser transferido.
Diz ele que fez sentido, um batimento com o calcanhar do pé esquerdo, um passo á retaguarda, rodou á direita e, em passo acelerado, se foi posicionar frente ao seu comandante de pelotão, ficando em sentido durante muito tempo!
Ainda não estava nele. A farda, cinza matizada, feita de tecido que, quase que se a tirasse ela ficaria ali, hirta e sem se mexer, sozinha, tal era o padrão e a qualidade do tecido de que era feita. Muito inchado, lá permaneceu durante mais de um quarto de hora. Nada nem ninguém lhe fazia bulir um só cabelo que fosse (cortado á escovinha!)
Passado aquele tempo, ouviu pronunciar o seu número (Sim! Naquele local os homens não eram mais que um número! O nome tinha-lhe sido dado pela mãe, não era para ali chamado, nem no campo se aceitavam ou metiam saias!) O nome não era lá pronunciado.
Oh “137” apresenta-te no gabinete do nosso Comandante!
O 137 estremeceu quando teve consciência do que estava para acontecer. Com a especialidade adquirida de condutor hipo, iria ser-lhe atribuído um equino e sua aparelhagem (é seu todo este palavreado e forma como se dirige ao cavalo!)
Mas tal material não estava naquele campo!
Iria receber guia de marcha para se apresentar em Lamego e aguardar comunicação de mobilização para os campos de batalha na longínqua França, ponto onde tinha rebentado a 2ª Guerra Mundial e, Portugal, por ser um País aliado, tinha que enviar tropas para o local.
Por Lamego andou cerca de dois anos, um dia após outro, sempre com o coração nas mãos e a lágrima ao canto do olho! Ainda não estava mobilizado e já as saudades da terra e dos amigos o faziam definhar e o transformavam de forte e fero gandarês em humilde e amedrontada criança…
Será hoje? Questionava-se logo que acordava em cada manhã.
Escravo da responsabilidade que lhe havia sido atribuída, ganhou afeição á pileca, como carinhosamente tratava o seu trotador francês, alimentava-o, escovava-o e arreava-o de acordo com instruções que, oriundas do Comandante da Unidade, lhe eram transmitidas pelo seu comandante directo, homem vivido, duro, serrano a valer que não se sabe por que carga de água engraçou com o gandarês que lhe coube em sorte! Chegou a ir a casa dela algumas vezes e, já no final, privava com o mesmo no seu gabinete.
Chegou finalmente o dia em que a mobilização iria ser comunicada a todos e cada um dos soldados que ali se encontravam!
Formado na parada, com o coração reduzido ao tamanho de um vago de milho de pipoca e acelerado o ritmo a movimento imensuráveis, ouviu no altifalante o número de todos, menos o seu!
Pensou estar a sonhar e tratou, logo que destroçou, de se dirigir á Secretaria, não fosse o diabo tecê-las e, devido ao nervosismo, não ter sido capaz de reconhecer o seu numero.
Foi-lhe ordenado que se apresentasse no Gabinete do Comandante da Unidade!
Para lá se dirigiu de imediato e amargurou todo e cada segundo até que a porta se abrisse e lhe foi ordenado que entrasse para a sala de espera. Passou-lhe pela cabeça em catadupa, a imagem do Pai, da Mãe, dos amigos, da terra que o viu nascer… e chorou!
E assim estava, cabisbaixo, sem poder conter as lágrimas que, caindo pela face, percorriam o pescoço e se iam alojar na gola do dolman que envergava. Momentos houve em que, sem querer, fungou e soluçou. Fungava e arfava com a respiração! Mas mantinha-se de pé, em sentido, não fosse o Comandante entrar repentinamente e atrapalhar-se para o cumprimentar como era devido. Naqueles minutos, que lhe pareceram uma eternidade, de todos se despediu, a todos abraçou, e já no final, fez a promessa: Iria a Fátima a pé e, da Cruz Alta até á Capelinha, rastejaria até aos pés de Nossa Senhora, caso regressasse vivo e são. Rezou! Imaginava-se já nos campos de batalha. Arreados, ele e o trotador, preparados para a todo o momento, fazer deslocar para sítio mais conveniente, o canhão que lhes estava entregue e iria ser utilizado para provocar baixas nas hostes inimigas. Capacete de aço na cabeça, estalabartes nos ombros, mochila com rações de combate para si e as doses para a alimária sempre muito perto. Desceu á terra quando a porta se abriu. Bem disposto, com ar prazenteiro, o Comandante em pessoa abriu-lhe a porta do seu local de trabalho, fê-lo entrar á sua frente e, depois, sentou-se á sua mesa de serviço.
Permaneceu em sentido até que o Comandante o mandou descansar.
Apercebendo-se do estado em que se encontrava, o Comandante não perdeu tempo em sossegá-lo. Precisava dele ali, motivo por que não permitiu que fosse mobilizado para os campos de batalha! Iria deixar os trabalhos que vinha desenvolvendo e passaria a seu impedido, caso aceitasse, caso contrário, iria mesmo até á costa Francesa…
Beliscou-se mais que uma vez! Deu um salto! Pediu desculpa de imediato pela afronta e descompostura e, de lágrimas nos olhos, disse sim ao Comandante. Pediu-lhe que lhe assinasse um passaporte para ir a casa, local onde não ia já há mais de dois meses. Queria dar a notícia aos Pais. Assim lhe aconteceu…

Tenho razões para ser gandarês : Sou neto da "Ti Manca", do "Ti Zé da Domingas", da "Ti Alzira da Reboca"! Forma simples que encontro para com eles dialogar, fazer com que nunca sejam esquecidos, que os meus filhos, amigos e todos os que a este blog se desloquem, deles se lembrem. Deles e doutras personagens a quem me curvo pela sabedoria, pela forma de vida, pela maneira de estar, pela influência que em mim tiveram, pelo sorriso que ainda ostentam nas imagens que os perpetuam no Campo Sagrado.
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