...Sempre falou do pai
com muito respeito e convicção. Lembrou-se dum episódio em que o surpreendeu a
ler qualquer coisa que arrecadava numa mala de folha, rectangular, que tinha no
sote da casa de arrumação e onde acumulou recordações. O pai não o deixou,
nunca, bisbilhotar o conteúdo de tal baú. Esse facto aguçou-lhe a curiosidade e
repentinamente lembrou-se dele. Tu podes muito bem rir-te a bom rir que não me
fazes deferença denhuma. Mas que foi berdade lá isso foi. E para to provar,
dá-me aí quatro ou cinco minutos que eu vou ali dentro e já volto.
E saiu de imediato rumo á casa de arrumação
deixando-me á sombra da figueira. Estava-se ali muito bem. Soprava uma aragem
muito agradável, embora se sentisse a onda de calor que nesse dia fazia,
parecendo até que trepava da terra para o firmamento. Assim se passaram uns
bons dez minutos mas eis que regressa o meu camarada do dia sacudindo na mão um
papel esverdeado, o verde já esbatido pela luz e pelo tempo e ares que o
assolaram, que me entregou para que lesse e… ficou calado. Pareceu-me que se
tinha ido embora! Apercebi-me de que algo estava a mexer com o seu íntimo,
quase diria que lhe vislumbrei uma lágrima ao canto do olho. Parecia um
envelope mas verifiquei, pelos dizeres que me saltaram á vista de imediato, que
tratava dum aerograma! Isso mesmo! A forma de correspondência entre os militares
em combate nas ex Colónias Ultramarinas e seus familiares e amigos no
Continente. Era uma Edição exclusiva
do Movimento Nacional Feminino. O transporte deste aerograma é uma oferta da
TAP aos soldados de Portugal. Correio aéreo Isento de porte e sobretaxa aérea.
Fazes ideia da
sinceridade do que aí está escrito? A primeira carta da minha Madrinha de
Guerra! Nunca a vi! Nunca a procurei nem ela me procurou a mim. Pelo menos que
eu saiba mas isso também não tem interesse denhum para ti!
Podes até ficar com ele! Ofereço-to! Mas…
cuidado com os nomes que aí estão! Respeitinho, oivistes?!
E, com todo o respeito, aqui o publico
neste dia em que passam cinquenta anos da data em que foi escrito! Claro que
omito os nomes e endereços como me foi pedido… (traduçáo/cópia ipsis verbis da
imagem)
“XXXX, 26 /3/ 1967
Inesquecível João
faço sinceros e ardentes votos para que a paz, saúde e alegria sejam os três
principais elementos a constituir a sua felicidade que eu encontro-me bem
graças Adeus.
João ao receber o
seu eurograma fiquei muito surpreendida, por não saber de onde é e a quem
pertence, mas desde já lhe passo a escrever para saber alguma coisa a seu fim
dizia que era quase um vizinho desconheço em tudo mas se quiser que eu seja sua
madrinha diga-me para a próxima, a verdade e não a mentira, porque como sabe a
mentira só dura enquanto não chega a verdade e;
João digo-lhe
atender ao seu pedido tenho imenso gosto nisso em ter um afilhado nas
províncias Ultramarinas. Pois pode para a próxima tratar-me como madrinha não
acha que está bem assim? Pois acredite nesta que lhe será sempre sincera e
através de madrinha ainda podemos viver felizes um dia Deus queira que tudo
isto aconteça que eu estou completamente descomprometida mas com isto não quero
dizer com isto ou não fique a pensar que o estou a gozar não trato disso não
sou pessoa para isso não quer crer que isto é verdade! Eu sei João que nessa
vida que você está defacto deve custar bastante, quem esta abituado a andar a
passear por um lado e pelo outro agora é chato, mas paciencia temos que nos
conformar com o que Deus nos destina mas eu peço desde já Adeus que lhe dê boa
sorte e muitas felicidades e o que eu lhe desejo mais Agora João passo a
terminar pesso-lhe que quando receber esta meu eurograma que se encontre bem
que estou sempre à mesma pesso-lhe do meu coração que não faça papel de comédia
com as minhas palavras nunca gostei de coisas de brincadeira pois eu confio em
si mas como sabe é melhor prevenir que remediar não acha
Com isto finalizo
enviando-lhe, os respeitosos cumprimentos Adeus ate
Sou esta que assino
respeitosamente
Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Adeus até à sua
resposta sim Adeus”
Olhei-o e dei por ele embebecido, esperando
a minha reação ao conteúdo da missiva. Os olhos arregalados inquiriam-me. Os
lábios tremiam e os dedos entrelaçavam-se uns nos outros, como que nervoso, com
medo ou ansioso por uma manifestação da minha parte. Mantive-me calado, mudo,
cego, imóvel. Fiz uma viagem rápida até aos longínquos anos sessenta do século
passado. O que me passou pela memória! Numa primeira fase coloquei-me na pele
do soldado que, longe dos seus e da terra que o viu nascer, se entretinha,
passava o tempo, chorando lonjuras e saudades dos entes queridos e vida que
viveu, mesmo amargurada, avivando memórias e afogando as mágoas num choro
descontrolado e silencioso, daqueles me que já não há lágrimas para correr e
humedecer os olhos... Logo após, passei ao papel de Madrinha… e interroguei-me
com firmeza acerca dos motivos que me levaram a responder á missiva que me fez
manuscrever, como resposta, aquilo que leram e redigi. Era sem sombra de dúvida
uma virgem pura, educada em regime de ferro e fogo, natural e residente em
lugar situado longe dos grandes centros, aldeias ou cidades, que, sensibilizada
por motivos altruístas, se entregava ao eventual despudor de alguém que nem
sequer sabia que existia até ter recebido a sua comunicação. Que coragem!...
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