quinta-feira, 3 de novembro de 2022


 …E que bem que lhe sabia ficar em casa nesse dia!

Era inesperado, bem o sabia, mas a sorte também havia de começar a mudar. Levantou-se á mesma hora de sempre, não fez a barba, quebrou desde logo a rotina, tomou o café e foi directo para o quintal. O gado chamava-o e ele, como que a querer entabular diálogo, ia falando baixinho, numa linguagem monossilábica, quase inaudível para si próprio, pensado um pouco alto, mantendo um ar de satisfação no rosto.
Por um dia estava longe, livre da escravidão do relógio, da máquina de barbear, do rebuliço do dia-a-dia. Por um dia achava-se chefe de si mesmo, não tinha que dar contas senão ao… seu estômago! E estava seriamente a pensar em testá-lo!
Sentia-se bem! Era o primeiro dia de “descanso” que a vida lhe estava a dar depois de tantos meses de incerteza, de medo, de ansiedade. Passado todo este tempo achava-se capaz e necessitado de se abrir com alguém, de fazer ouvir a sua voz, de dividir preocupações e acumular certezas. O Pimpolho (de que omito o nome para protecção da sua privacidade e a pedido do próprio, pimpolho este que hoje já conta mais de setenta e não é mais que o nosso interlocutor!) agarrava-se á vida com todas as forças. A mãe, idem aspas. Resta-lhe, no entanto, um pequeno senão que o atormenta: para onde terá ido o tumor gerado na mesma altura do pimpolho e no mesmo espaço alojado até determinada altura? O que o preocupa é realmente saber como desapareceu ele!
E vivia nesta amargura que não o abandonava e afligia dura e severamente. Tinha medo! Medo do que poderia ter sido! Medo de ficar só! Medo de perder o gosto pela vida! Medo de mostrar aos mais chegados que… tinha medo e quais eram as razões desse medo. Nunca tinha tido coragem de falar abertamente com a sua Maria acerca desse assunto, que aceitava ser só dela mas que o revoltava por esse facto. Temia o pior!
Talvez, sem fundamento, agonizava neste estado de torpor de vida e consciência e acordava sobressaltado durante a noite, tentando ouvir a respiração da Maria só depois descansando, ou melhor, dormindo mais um pouco, forçado pelo cansaço! Recorda a cada momento a ansiedade, o desassossego que o afligiu quando a Médica o chamou á sala para assistir ao nascimento do Pimpolho. E estava já interiormente preparado para tudo quando algo que desconhece aconteceu a Médica decidiu ter de fazer o trabalho no Bloco! Azar o seu! Agonia dobrada! Acompanhou a Maria até á entrada do bloco e…foi impedido de entrar! Ficou por ali, num impasse que o enlouquecia e queria tirar á vida. Viu-se só naquela minúscula sala de espera, que lhe parecia enorme e em vez de lhe abrir horizontes, o enfezava e fazia definhar atrofiando-o até na respiração! Ousou, por um curto período de tempo, como que esmagado pela dor da dúvida que lhe provocava fortes dores de cabeça, falta de visão, incerteza de movimentos, espreitar pela porta por onde havia entrado, diametralmente oposta aquela por onde haviam levado a sua Maria, espreitar para o espaço que lhe parecia ser um corredor mas a que não havia tomado atenção. Deparou-se com um letreiro sobre a porta, fechada, que deveria dar acesso a um compartimento situado mesmo em frente daquele onde se encontrava, que dizia simplesmente “CAPELA”.
Absorto, não conseguiu, no imediato, relacionar o espaço indicado com o significado da palavra que lia sobre a porta. Uma senhora, vestida de branco e já com alguma idade abeirou-se e disse-lhe simplesmente: “entre! Esperam-no lá dentro! Reconfortar-se-á e quando houver novidades, dar-lhas-ei pessoalmente!”
Entrou de rompante, quase atropelando a senhora em causa! Era na verdade uma Capela. Pequenina! Silenciosa, onde se encontrava uma mesa robusta, com tampo de madeira grossa, servindo de ara. Sobre a mesa, uma toalha alva! Sobre a toalha, uma cruz, também de madeira, com uma imagem, sofrida, de Cristo crucificado.
Olhou em volta e não viu ninguém! Mas…haviam-lhe dito que o aguardavam lá dentro!
A sala só tinha três bancos podendo cada um levar quatro pessoas sentadas!
Já que ali estava, aproximou-se da mesa/altar e deixou-se cair no banco da frente. Não sabe descrever se se sentou, se caiu mesmo! O ambiente era de silêncio absoluto! Ele espetou os olhos na Cruz, fixou a face de Cristo, encarou as suas chagas e… desatou a chorar baixinho, desalmadamente! Soluçava que nem uma madalena e assim se manteve, não sabe ao certo por quanto tempo! Ele e quem o esperava! Nem uma palavra audível dirigiram um ao outro! Entenderam-se no sofrimento, na angústia sofrida e consumação do destino involuntariamente fabricado. Sabia só que pouco passava das três da tarde quando ali entrou! No seu soluçar, lembrou os ensinamentos que adquirira nas aulas de catequese, Ele também havia entregue o espírito ao Criador exactamente ás três da tarde!
Um calafrio, lento e forte, percorreu-lhe todo o corpo. Suores frios, em vagas grandes, mais parecendo pingos de chuva em beiral, percorriam-lhe o rosto! Quem lhe estaria a sussurrar tais pensamentos, a ele que se encontrava numa casa de vida existente num edifício onde por vezes se luta por trazer á vida novas vidas? Como poderia estar a receber correntes negativas e a deixar-se influenciar tão fortemente? Parecia petrificado, hipnotizado, tendo adquirido uma cor branca de um pálido agressivo e não desviava os olhos daquela imagem sofrida! Teve a ligeira impressão de que alguém lhe pousou a mão sobre o ombro mas não reparou quem lhe fez tal! Não quis saber quem lhe estava a fazer companhia e manteve-se na mesma posição!
Certo que não foi ouvido nenhum rumor de porta a abrir e/ou a fechar o que quer dizer que ninguém entrou nem saiu daquele lugar com ele lá dentro!
O relógio não parou… não sabe ao certo por quanto tempo esteve na Capela sozinho (?!).
Repentinamente, alguém abriu a porta que, ao rodar no eixo da dobradiça, produziu um ruído semelhante ao de rato a chiar. Era uma enfermeira, mas não a mesma que lhe havia dito “quando houver novidades, eu mesma lhas virei dar”. Com bata verde, luvas e máscara, fez-lhe sinal para que a seguisse. Teve um pressentimento que quase o levou á loucura. Seria possível? Estaria para receber alguma notícia relacionada com os pensamentos agoirentos que nessa tarde o haviam afligido? Quase como um autómato, sem vontade, a medo, vagarosamente seguiu a figura até á sala por onde lhe levaram a Maria. Ali o mandaram esperar um pouco. Ainda tentou o diálogo, mas não obteve qualquer palavra. Passado um minuto, que lhe pareceu uma eternidade, apareceu-lhe então a tal Senhora vestida de branco, algo idosa, que trazia ao colo e embrulhado em algo que parecia um lençol, um bebé! Pequenino e muito arroxeado (sianuzado?)! Colocou-lho ao colo e disse-lhe: agora já parece estar tudo bem! Ainda com o filho nos braços, com as lágrimas a cair, interrogou a enfermeira com ansiedade e com os olhos marejados. Agora já está tudo bem, foi a resposta que obteve! E levou o bebé pela mesma porta por onde o trouxe! Ficou ali parado alguns minutos chegando mesmo a encostar o ouvido á porta para tentar ouvir alguma coisa! Baldado o esforço!
Lembrou-se repentinamente e arrancou quase a correr para o espaço onde esteve durante todo o tempo desde que deixou a Maria. Ali chegado, caiu deliberada e voluntariamente aos pés daquele que na cruz havia sido Crucificado! Baixou os olhos e… soluçou em silêncio!
Entrou nele e decifrou o significado das palavras da mulher vestida de branco: “alguém o espera lá dentro”! Lembrou-se também da mão que sentiu sobre o ombro! Foi Ele que o quis afastar dos maus pensamentos que estava a alimentar!
E a sua confiança que esteve tão abalada!
Como pode por em causa a esperança e certeza de tudo d’Ele depender? Se sempre fez tudo como se tudo de si dependesse e simultaneamente, esperava, confiada e loucamente, como se tudo e exclusivamente d’Ele dependesse, como pode ter vivido momentos tão amargos e longos naquele dia, sem sequer se ter lembrado de dividir com Ele as preocupações?
E ainda hoje não sabe a resposta á questão que tanto o afligiu durante tanto tempo!
Nem uma só vez se lembrou de sorrir e agradecer … por ter acontecido!..."

Sem comentários:

Enviar um comentário

Arquivo do blogue